quarta-feira, 31 de agosto de 2011

77- De Volta ao Luto


         A chuva ainda me encharcava. Eu continuei parada no mesmo lugar. Ficar molhada era o menor dos problemas naquele momento.
         Continuei parada, encarando sua lápide, como se isso pudesse mudar o que aconteceu. Como eu não percebi? Como eu não pude notar que ela estava obcecada? Talvez se eu tivesse percebido antes, isso não tivesse acontecido.
         No cemitério, havia um ipê com flores roxas. Me encostei nele e me sentei no chão encharcado. Fiquei sentada ali, embaixo da árvore, encarando o céu cinzento e chuvoso.
         Algumas lágrimas queriam escorrer pelo meu rosto, mas eu insisti em segurá-las, como se pudessem molhar meu rosto mais ainda.
         Continuei ali, olhando para a lápide com seu nome. Deixando que ela me assombrasse, me perturbasse, acabasse com a minha paz.
         Fiquei no mesmo lugar por alguns minutos, até que Nath apareceu para falar comigo. Sua barriga estava relativamente grande, deixando visível seus 5 meses de gravidez. Ela usava um guarda-chuva preto para se proteger da chuva. Ela se abaixou o pouco que podia para falar comigo.
-A chuva está apertando – ela disse – É melhor você vir conosco, para se aquecer
-Não quero – respondi, seriamente
-E o que você vai fazer? Ficar parada aí, encarando a lápide dela?
-Basicamente, sim
         Para se abaixar mais, ela teve que abrir as pernas, como uma galinha. Num dia normal, eu teria rido da cena. Mas aquele não era um dia normal.
-Você pode pegar uma doença! Olha só pra você: toda molhada! – ela exclamou
-Nath, é você quem está grávida. É você que está correndo risco de ficar doente. Vá para um lugar seco – disse calmamente
         Ela se segurou na árvore para ter apoio para levantar.
-Você tem certeza? – ela perguntou
         Respondi com a cabeça. Ela desistiu e me deixou sozinha.
         Fechei meus olhos e, por um momento, viajei no tempo. Estávamos na 5ª série, brincando e conversando durante o recreio. Na época, não tínhamos preocupações. Não sabíamos de nossos dons. E Manu ainda estava viva.
         Ao contrário do presente, aquele dia estava ensolarado e quente. Algumas folhas estavam espalhadas pelo chão, devido ao outono.
         Estávamos conversando sobre um garoto que acabara de se mudar para a minha rua. Como sempre, Manu se gabou, dizendo que poderia ficar com ele. Me surpreendi por sentir falta disso.
         Fui trazida de volta ao presente com um susto, causado por um trovão. Realmente, a chuva estava ficando forte. Mais trovões vieram juntos, dando a impressão de que estavam a cantar pela morte de Manu.
         As gotas de chuva ficaram maiores. Me levantei e comecei a vagar pelo cemitério. Percebi que agora eu era a única a permanecer ali.
         Fui andando lentamente em direção à saída do cemitério. Entrei em meu carro e liguei o rádio. Precisava esvaziar a mente, tirar tudo aquilo da minha cabeça. Coincidentemente, assim que liguei o rádio, começou a tocar “Back to Black”, da Amy Winehouse.

We only said goodbye with words (Nós apenas dissemos adeus com palavras)
I died a hundred times (Eu morri mil vezes)
You go back to her (Você volta pra ela)
And I go back to... (E eu volto para...)
Black, Black... (O luto, luto...)

-Qual foi, Amy? Tá de brincadeira comigo? – falei sozinha
         Aquela era a última música que eu queria ouvir naquela hora, então troquei de estação. Coloquei numa estação de notícias.
         Girei a chave do carro e dei partida. Fui dar uma volta pela cidade.
         Parei num semáforo no centro da cidade. Um menino fazia malabarismo, sem camisa, no meio da forte chuva. Eu até poderia achar aquilo um absurdo, se eu não estivesse encharcada.
         Depois de alguns minutos na estrada, cheguei na pousada onde o pessoal estava hospedado.
-Allanis, você está encharcada! – disse Pattison
-Fui sereia na vida passada – respondi com sarcasmo
-Você pode pegar uma gripe! – ele exclamou
         Não demorou muito para virem os espirros.
-Vou tomar um banho quente. E quero ficar sozinha, tá? – falei calmamente
         O banho quente foi bom para me acalmar.
         Assim que saí do banho, deitei na cama e liguei a TV. Logo depois, Lucas C entrou no quarto.
-Eu quero ficar sozinha – protestei
-Eu sei pelo que você tá passando. Eu perdi meu pai – ele começou
-Ah, tá. Que bom – falei grosseiramente
-Eu sei que você está triste, mas não deveria ficar sozinha
-Mas eu quero – insisti
         Ele me encarou, mostrando que não sairia tão cedo. Resolvi me abrir.
-Nós éramos amigas de 10 anos! – expliquei
-Eu e meu pai éramos de 22! – ele argumentou
         Até que esse era um bom argumento.
-E como você superou? – perguntei
-Ainda não superei. Continuo acordando no meio da noite, pensando que poderia salvá-lo, que poderia impedir que isso acontecesse...
-Mas você não pôde. E se isso acontecer comigo? E se eu nunca superar? – perguntei
-Você vai superar, mas isso não acontecer num passe de mágica
-Talvez tenha razão... – enfim, concordei
-Tragédias acontecem por um motivo: para nos deixar mais fortes. Pense nisso – ele disse, saindo do quarto.
         Talvez ele tivesse razão. Eu poderia superar.

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